sábado, 23 de abril de 2011

Um Longo Adeus

Esse é o título de um livro. Mas não haveria melhor forma de manifestar-se diante do fim. Preparara tudo. Na verdade vinha preparando desde o momento em que veio ao mundo, e parecia saber a hora exata em que partiria.
Naquela noite estava tudo estruturado. Separou seu Château Mouton-Rothschild de 1945 do ano em que a guerra havia findado.
A França não era a mesma, mas o Au Lapin Agile continuava de pé. Passara por ele aquela tarde. Já havia visitado o lugar tantas vezes, fazia inclusive parte da história dele. Havia uma foto sua nos altos de sua juventude no corredor do local. Deu um adeus para as velhas lembranças. E enquanto se dirigia para saída e suas mãos enrugadas haviam girado a maçaneta, uma lágrima escorreu de seu rosto.
Tantos amantes, tantas canções, tantos sonhos.
Fora uma jovem puritana, se transformou numa cobiçada dançarina de cabaret e acabara como uma grande filósofa. Era quase como uma Lou-Salomé com ares de uma Simone de Beauvoir.
Deixara o passado para trás mas nunca deixara de ser uma grande menina. As convenções mantinham seu ego nas alturas. Debatia face a face com os maiores gênios da humanidade. E quando não estava certa, persuadia seus adversários com um par de pernas estonteantes.
Logo seus adversários passavam a ser seus novos amantes.
E todos na cama tinham um objetivo em comum.
Mas o tempo sempre passa, e de repente suas pernas não eram tão atrativas quanto antes. E o tempo lhe ensinou a persuadir de outra forma.
Seus adversários eram amantes de suas ideias, e não de suas pernas.
De onde tirara aquele vinho?
Neuilly-sur-Seine era um lugar bem melhor antes dos artistas começarem a frequentá-lo. Seu pequeno apartamento tinha uma vista tão bela quanto a inocência de uma criança. Até hoje se culpava por não ter tido uma. Poderia ter adotado, seira altruísta, mas não o intentava. E para quem deixaria todas aquelas lembranças?
Toda mulher sempre sonha em ter filhos. Entendera ao fim da vida o porquê disso. Se deparava com o fato de não poder repassar seus bens, suas lembranças...
Tirou o pó da velha vitrola, já era noite. As estrelas começavam a cortar o sol que se punha. Observara o pôr-do-sol todos os dias desde que se mudara para lá. Era a coisa mais preciosa daquele local, e julgava esse ser o motivo do alto valor do local.
Escrevera um testamento, tudo para os pobres!
Pobres de espírito que não admirivam a poesia, que não liam com a alma, que não viam com o coração. Ou seja, tudo para o governo.
Fora irônica, aliás os anos lecionando filosofia lhe ensinaram bem a fazer isso. Seus alunos iriam ao seu enterro, e talvez até deixassem flores no seu túmulo.
Tirou o vinil autografado por Sinatra, o maior. Nunca o abrira, mas já era hora. Ajustou a velha agulha, ouviu o atrito com o disco, que gemia como uma virgem.
Aquela voz inconfundivel gritou: That's Lifeeee.
Era essa a canção, pegou uma taça do vinho que já estava aberto sobre a mesa. Abriu voluptuosamente as janelas. Despiu-se
Colocou o vestido empoirado e vermelho. A lua parecia beijá-la. Dançava conforme a canção.
E nunca se sentira tão leve.
Fechou os olhos e por um instante as rugas desapareceram, as varizes pararam de doer. A idade nem pesava tanto.
Viu todos seus amantes naquele grande salão. Todos beijavam sua mão e convidavam para uma dança.
Não abrira mais os olhos....
Mas um dia os fechara?

Não morre quem um dia bem viveu.

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